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19 de jul. de 2008

Conto Ficção Científica 2: Sagrado


O relógio despertou a toda altura, ligado ao seu braço, com uma música que fez o coração de Poison Apple saltar até as amígdalas. Passou a mão no canto da boca e mordeu os lábios. Estava ainda, deitada no chão da sala. Uma profusão de fios enrolava-se como serpentes pelo caminho: cabos, conexões, máquinas. Levantou-se e foi em direção ao banheiro. Fazia alguns dias que não sabia o que era um bom banho.
A água deslizava macia e morna, e o vapor tomou conta, embaçando o box. Deslizou os dedos pelos cabelos, querendo sempre que tudo aquilo fosse um sonho bizarro e como Alice, estivesse voltado à realidade. Porém, no íntimo sabia que era tolice. Estava ali. Uma simbiose, saliente e fria, na sua nuca.
Alguns minutos depois, Poison Apple já estava na rua. Precisava encontrar “Vanilla Mill” que faria o pagamento para outro trabalho à Blackdoll. Descia a St. Paul, naquela tarde cinzenta, capuz na cabeça, botas de vinil. Não gostava de transações bancárias, eram fáceis de rastrear. Nessas horas, nada como ‘olho no olho’.
No cruzamento com a St. Paul, o Boulevard St. Thomas estendia-se até o parque Lilies Garden , com seus exuberantes lírios e perfumadas rosas na primavera. Entretanto, no inverno, o lugar estava com uma impressão tétrica, com silhuetas de anjos de verdes musgos e fontes jorrando, numa soturna canção.
Diminuiu a passada assim que percebeu que o deliverer estava sentado ao banco. O reconheceu de longe, apesar de nunca tê-lo visto pessoalmente. Vanilla Mill era um conhecido extropian, um “Ás” em metanfetaminas potentes, capazes de aumentar em 100% a capacidade física de seus usuários.

-Finalmente, Poison Apple!
-Também estou feliz em te conhecer, mas vamos direto ao assunto, sim?- disse, com mal humor.
-Oh, sim! – disse, passando seu braço pelos ombros de poison_apple e ofereceu-lhe da pipoca que estava comendo.-Vamos caminhar, Apple, caminhar...

Magro, moreno e com olheiras enormes, Vanilla Mill era um homem comunicativo. A cada final de frase de sotaque espanhol, pontuava com um largo sorriso. "Acho que está enganado, Vanilla. Esse não é o meu pagamento...aqui tem... muito mais!"exclamou confusa, depois de abrir o envelope azul.
-Esse é seu pagamento e sua nova missão, Apple. Tivemos uma pequena alteração de rota – sorriu – e a informação que precisa está nesse chip.

Sentada em sua cadeira, na frente do computador, Apple entrou no sistema. Conexão direta com o ciberespaço. O circuito implantado de titâneo era perfeito, sistema e ergonomicamente. E tinha uma velocidade absurda de transferência de dados. Poison Apple possuía um neurolink.
Os fones nos ouvidos despejavam um refrão de notas instigantes e conhecidas:

“Bem, eu só quero caminhar para fora deste mundo,
Porque todo mundo tem um coração envenenado.”
(Poison Heart, Ramones)

O que ela mais desejava nos últimos três anos era algum tipo de tiro de misericórdia. Sentia sua vida tão rápida quanto a interface de dados implantada em seu cérebro. Afastou-se de sua família, não tinha amigos, bebia absinto todos os dias, se alimentava mal, fazia sexo com desconhecidos sem nenhuma ligação sentimental. Seu corpo não era mais importante. O sistema binário era o seu lugar: códigos secretos, criptografias. Era a própria hierofania: seu santuário sagrado.
Apertou “Enter”, e deu mais uma mordida na maçã. Subitamente, Kim-Ly, saltou em seu colo, ameaçando arranha-la. Ela imaginava que ele não gostava de seu olhar, quando estava conectada: sua íris ficava como faróis de xenônio. Parou um instante a olhar o felino e encerrou a conexão.
-Certo, rapazinho, vamos dar uma volta.

Poison Apple acomodou Kim-Ly na sua caixa de viagem e o colocou na BMW C1, para um passeio, afinal, depois de tantos dias sob clausura, mereciam um pouco de ar puro. Ah, o vento no rosto e a luz do sol! Havia recusado a nova encomenda de Blackdoll. Precisava de algum tempo seu. E Kim-Ly era o único ser que a fazia sentir-se ainda humana.
Mas, onde andaria Crazy Wolf ?? Era o que poison_apple perguntava-se sempre e sempre tentava esquecer. O Amor é mesmo uma falácia.
Sentou-se num balanço da praça e soltou o bichano. Distraiu-se olhando para o verde à sua volta, as pessoas indo e vindo, os pássaros bicando restos de pipoca. A coleira de Kim-Ly tinha um rastreador e com apenas um clique, ele saberia que tinha que voltar, pois um dispositivo com a voz de poison_apple o chamaria. Entretanto, não estava atendendo ao chamado.
Poison Apple foi na direção que por último o tinha visto, perto de alguns carvalhos, próximo ao Green River. “Ainda implanto GPS nesse gato...”
Continuou chamando por Kim-Ly até chegar na beira do rio. O coração acelerado, imaginando que ele pudesse ter caído ali.

-Olá, Apple. Gostei do modelito verde-limão. – disse a voz conhecida, atrás dela.
-Acho que esse ‘tom’ não combina contigo, Blackdoll. Kim-Ly, venha cá. – falou, irônica. O gato estava no colo de Blackdoll, sem a coleira.
-Se quisesse falar comigo, poderia mandar uma mensagem.
-E você não viria, lógico.
-Você já tem minha resposta. E é NÃO!
-As coisas não são tão simples assim, princesa.

Diferente do dia do encontro, no buncker do Chaos Club, Blackdoll não estava montada, era um homem agora e praticamente irreconhecível, a não ser pelo timbre gutural. Os cabelos não eram falsos, estendiam-se realmente até as espáduas, num tom preto-azulado. Os olhos de um azul translúcido e assustadoramente tranqüilo.

-Você já sabe demais, sei que não é uma imbecil. Sabe de nossos planos e onde queremos chegar...
-Isso não é problema meu, faço apenas meu trabalho. Não me interessa onde querem chegar!
-Mas precisamos de você, Apple...eu, preciso de você. Não confio em mais ninguém...

Blackdoll usou sua última arma e acertou em cheio. Poison Apple se rendeu ao sentimentalismo dos olhos translúcidos e o verde das notas, com cheiro de novas. Aquela era uma missão altamente arriscada, algo que ninguém estava aceitando, nem por todo o dinheiro do mundo. E ela sabia que colocaria seu pescoço na guilhotina. Talvez fosse esse o golpe de misericórdia tão esperado. E descobriria que em suas veias, não corria mais sangue e sim, energia cinética.
Jogou a bolsa com o dinheiro na cama e saiu, para a noite, onde em alguns dos inúmeros clubs de Princetown, dançaria e beberia até sentir todas as suas terminações nervosas cederem de exaustão e absinto.

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