Tradutor/Translator

15 de abr. de 2009

Ilusão de ótica


Vê-lo dormindo era seu passatempo preferido. Quase nunca tinha tempo, acordava em cima da hora e saía correndo para o trabalho, todos os dias. Mas, em alguns dias ela podia, e então, se demorava nessa contemplação.
Passava a língua distraída em seu aparelho dentário, um acessório desconfortável, mas ela imaginou que ele gostava, percebeu como ele olhou para aquela vendedora da loja, no último final de semana.
Enrolou uma madeixa de cabelo, agora, num tom vivo de vermelho, passeando o olhar no corpo adormecido. Sim, ele gostava de Garbage, de telas de ruivas valquírias, do vermelho e o negro.
Tocou de leve seu ombro, em movimento descendente com a ponta dos dedos até o pulso esquerdo. Não queria acordá-lo, retirou delicadamente. Um fiapo de luz entrava pela fresta da cortina pesada e bege, clareando os móveis, o verniz do violão, algumas roupas caídas ao lado da cama. Fotos em preto e branco na escrivaninha perto do computador, sempre com seu écran aceso, despejando uma luz esverdeada sobre as coisas dele.
Ela não imaginava sua vida sem ele e não lembrava como havia sido antes. Tudo girava em torno dele, incluindo ela. Girava. Já não chorava mais, ela aceitava, afinal todo gênio é assim, um incompreendido. Ele garantiu a única certeza que ela realmente precisava: nunca, jamais, em hipótese alguma, sairia do seu lado, até o fim de suas vidas.
Todas as outras coisas eram simples ilusões, sonhos irreais, das quais uma mente excepcional necessita para alimentar sua voracidade de histórias e fantasias. Esse homem excepcional que estava deitado na sua cama era seu e isso bastava.
Nenhum tipo de mensagem suspeita a abatia, nenhum e-mail, telefonema ou conversa insinuante tirava seu homem do lugar onde ele sempre estará preso por escolha própria em cativeiro invisível, mas poderoso.
E ela se esforçava! Mordeu o lábio inferior, num pensamento de desgosto. Corria desesperada para acompanhar suas idéias complexas, discursos eloqüentes, suas dores imateriais, aqueles cortes que de vez em quando apareciam no antebraço, e a sua detestável e apaixonante habilidade de atrair mulheres que, irremediavelmente, pareciam sempre tão mais inteligentes que ela, tão mais experientes, viajadas, cultas e acima de tudo, belas. Espremeu com força a coberta com suas unhas vermelhas, esgazeando um pouco os olhos. Ele se moveu, trocou de posição e logo voltou à imobilidade.
Passou sua mão gordinha, quase infantil, nos cabelos dele e pensou que gostaria de ver refletido na parede em frente, os sonhos daquela cabeça feito slides. Por certo, ela precisaria de volumes sobre a arte, tratados de filosofia e alguns dicionários para poder decifrá-los. Como ela estaria representada nesses sonhos? Não sabia dizer, mas o que ela certamente não queria, era ver o rosto das outras mulheres que viviam por lá.
Sentiu náusea, gosto ruim na boca e um medo feroz dessas mulheres, pois, pensou, algum dia, uma delas poderia ultrapassar todas as barreiras daquele mundo imaginário. E sem que ela pudesse fazer absolutamente nada, essa mulher, com um simples toque transformaria sua vida em um simples ponto final, liquidando qualquer possibilidade de próximo capítulo. E ela ficaria feito símbolo, esquecida na poeira e distância de sua casa no meio do nada, sem seu sentido de realidade.
Aliás, a sua realidade era aquela decidida e criada por ele, como uma imensa sala de espelhos. Qual deles mostrava o seu homem verdadeiro? Isso quase não importava para ela, verdadeiro era aquilo que tocava. Tocou naquela nova e estranha tatuagem, com um profundo vinco entre as sobrancelhas. Imaginou que aquele lagarto pudesse saltar da pele direto em sua garganta. Retirou a mão rápida, como se tocasse algo proibido.
Então, ele acordou, e sonolento a puxou para seu lado, sem dizer nada, numa ordem muda e cálida, e ela adormeceu em seus braços, imaginando que era feliz.

Música do texto:

2 comentários:

  1. Hei...deixaste de escrever sobre o terror...passaste a escrever sobre o amor. Tá supimpa ! Mas tu és fantástica...keep going..
    Bj doce do lado de cá do mundo..

    ResponderExcluir
  2. Me lembrei dos tempos áureos da adolescência.... beijos guria,, ta bom d+

    ResponderExcluir

Tua vez, aproveite.