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15 de mai. de 2009

Adorável vizinho


“L’enfer ces’t lês autres.” Sartre

Sábado pela manhã. Acordo com aquele zunido irritante de uma furadeira no andar de baixo. Imagino que meu vizinho seja uma imensa ratazana cinzenta e deseja transformar seu humilde kitnet em um queijo suíço.
Já aos domingos, costumo despertar mornamente pelo alarme enlouquecido de uma motocicleta, que imagino ser de propriedade dele. Aliás, há algum tempo, todos os inconvenientes do condomínio, convencionei que partam dele. Inclusive a cáca de cachorro que sempre encontro na minha vaga do estacionamento. Bem, nesse caso, seria do cão dele, um poodle branco e de latido fininho e persistente. A fumaça de cigarro que sobe e empesteia o quarto de noite ou aquele cheiro gorduroso de omelete, embrulhando o estômago nas horas mais inusitadas.
Certa vez, calcei as pantufas e fui pé por pé até a frente da porta dele e deixei um bilhete anônimo: “Seu gosto musical é de morte!” E corri para casa. Na manhã seguinte, quando abria a porta para ir para o trabalho, o mesmo papel debaixo da minha porta, escrito no verso: “Seu gosto por pantufas também é de amargar...”
Travamos violentas batalhas sonoras, quase sempre às sextas-feiras. Porém, eu tenho um trunfo, pois ele possui um reduzido set list, o qual, eu detesto e conheço perfeitamente. Começa sempre com “Like a prayer”, passa por “New years Day” e acaba na trilha sonora nacional “Belíssima”. Respondo com um ataque antiaéreo britânico. Na artilharia, Kinks, Stones, Sabbath. Tudo no volume máximo. Depois, amenizo com alguma coisa de Pixies, Bowie, Reed. Até que vem o silêncio. Momento raro e que deve ser aproveitado ao máximo.
O mais enervante é pegar o mesmo elevador. Cada um inventa algo para não dirigir palavra ou olhar. Enquanto um confere mensagem no celular, o outro observa as unhas ou o display. Finalmente a porta se abre. Nada pior do que compartilhar o mesmo ar com o inimigo.
Discutimos pela primeira e última vez por causa do encanamento. Conciliar tempo e dinheiro disponível para consertos é algo meticuloso que requer uma prévia preparação espiritual e com ajuda psicológica. Mas, depois de algumas saraivadas e despesas, não há mais nenhum vazamento. Apenas a espera da última gota d’água.

Um comentário:

Tua vez, aproveite.